quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Desta vez, após sair de um concerto de violoncelos na casa do amigo Modigliani, o pierrôt sentiu que seria válido atravessar o largo, em direção à bodega mais próxima, para tomar mais alguns tragos de rum. Pouco antes, enquanto os quatro amigos Modi, Utrillo, Rivera e Picasso executavam Vivaldi, ele interrompeu a música com um grito agudo, dançando embriagado sobre uma das bancadas de madeira onde Modigliani depositava tintas. Por estar com o coração leve e musical - ele considerava um privilégio presenciar aquele momento entre amigos - numa atmosfera mística e carregada de emoção, o pierrôt começou a cantarolar uma canção vinda de outras beiradas do mundo, lá das terras do Brasil, e todos silenciaram:

“Sei que é doloroso um palhaço
Se afastar do palco por alguém...
Volta, a platéia te reclama!
Sei que choras, palhaço,
por alguém que não te ama...

Enxugas as lágrimas
e me dê um abraço
e não te esqueças
que és um palhaço!
Faça a platéia gargalhar...
um palhaço não deve chorar...”


Todos aplaudiram! Que momento de alegria! O palhaço sentiu que nada mais devia ser feito senão buscar uma nova garrafa de rum para celebrar, e todos se regozijaram! Ele saiu para a rua ébrio como nunca estivera na vida. Porém, dessa vez, havia um cheiro acre de lama e pedra molhada que transformou sua alegria em melancolia, uma melancolia intensa e impenetrável, como já era de se esperar. A perambular pelos becos vazios de uma cidade adormecida, ele pôs-se a pensar na sua colombina mais bela de todas. De certa forma, ele estava satisfeito. Na noite anterior, havia deixado em mãos alguns versos apaixonados, os quais ela retribuiu com um sorriso tímido, mas que o deixou suavemente encantado pelo mistério daquela figura aromática e linda.

Embriagado de amor, passando pela mesma ponte onde deram-se as mãos pela primeira vez, o palhaço subiu no fino parapeito e caminhou equilibrando-se com os braços. Embaixo, um rio escorria suas águas negras como a noite e desconhecidamente profundas. Na completa euforia, ele não se importava tanto com o risco. Por isso, ele escorregou.

Já a uns 3 metros de profundidade, ele sentiu no silencio das águas a mesma melodia executada por seus amigos, num frágil timbre de violoncelo. Ele abriu os olhos, mas nada podia ser visto naquela escuridão. Tornou-se fácil não respirar, o pulmão ainda possuía um pouco de ar. Ele começou a sentir o êxtase. Era uma sensação curiosa para ele, que gostava de colecionar sensações variadas e extraordinárias para apenas um corpo humano. Sentia ao mesmo tempo uma espécie de paz, sono, calor. Toda a embriaguez se fora. O oxigênio em seus pulmões já havia sido totalmente absorvido. O gás carbônico começou a ser expelido, formando borbulhas surdas no fundo do rio.

Afinal, aqui não está tão ruim assim, o palhaço pensou. Seu corpo já havia atingido os 7 metros de profundidade. Que emoção! Com certeza, este foi o melhor dia de sua vida. Obtivera o sorriso da colombina mais bela e distante de todas. Bebera o absinto sagrado juntos aos maiores pintores e músicos que já tivera a honra de conhecer. Cantara para eles sua canção e depois dançara sobre o próprio reflexo nas águas negras do rio, mergulhando assim para a morte como quem se deixa afundar num poço de paixão. A maquiagem já havia desbotado quando os olhos do pierrôt fecharam-se ao som das cordas. Felizmente, ele não pode ver seu rosto limpo.

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